Yossef ben Matitiahu Ha-Cohen,
um dos líderes da 1ª Revolta Judaica contra o Império Romano, termina seus dias
em Roma, onde adota o nome de Flavius Josephus. Lá escreve a história e
apologia da Nação Judaica e de si mesmo, suspeito tanto aos olhos de seus
correligionários, quanto aos olhos dos romanos Yossef ben Matitiahunasceu em
Jerusalém, em 38 ou 39 da Era Comum (EC), em uma renomada família de Cohanim da
qual se vangloria em sua Autobiografia, da qual procedem todas as informações a
seu respeito. Sua mãe descende da dinastia Hasmonéia. Assim escreve: “Tenho
reis entre meus antepassados. O ramo dos hasmoneus, do qual minha mãe é
proveniente”. Criado na melhor tradição da Judéia, recebe uma minuciosa
instrução da Torá e uma boa educação geral. Aos 13 anos iniciou seu aprendizado
sobre as principais seitas judaicas da época: fariseus1, saduceus e essênios.
Após viver dos 16 aos 19 anos junto a um asceta chamado Bano, opta por aderir
ao farisaísmo.
Soldado, político, comandante
Em 64 EC, aos 26 anos, seguiu
numa embaixada em Roma, onde obteve, por intermédio de Popéia Sabina, esposa do
imperador romano Nero, a libertação de alguns Cohanim que estavam presos. O
sucesso desta missão colocou Josefo em posição respeitável frente aos seus
conterrâneos. Foi, também, o seu primeiro contato direto com o poderio de Roma,
algo que o deixou fascinado e convencido de que os romanos eram invencíveis – e
iria influenciar sua atitude posterior. Ao regressar, tentou em vão dissuadir
seus compatriotas de empreender a guerra contra os romanos.
Não obstante, ao irromper a
grande revolta em 66 EC, quando os judeus reconquistaram temporariamente a
independência, foi designado pelo San’hedrin governador militar da Galiléia e
para lá enviado para organizar a resistência judaica. Entretanto, mais do que
preparar o território e a população para o enfrentamento com as legiões
romanas, Josefo combateu os conflitos internos provocados pelas várias facções judaicas.
Desaveio-se com os mais extremistas, que o culpavam de contemporizar. Por sua
atitude ambígua, foi acusado por vários grupos de traição à causa judaica.
Tamanha a sua necessidade de se justificar a respeito do curto tempo em que
governou a Galiléia, que irá dedicar a esse período de sua vida grande parte de
sua obra Autobiografia.
Vespasiano, enfim, ataca a
Galiléia com um exército de mais de 60 mil homens. Em sua obra A Guerra
Judaica, Josefo faz uma detalhada descrição dos acontecimentos. A devastação é
total. O povo da Galiléia não tinha como enfrentar os romanos em campo aberto
e, sitiadas, as cidades foram caindo uma a uma. Bloqueado em Jotapata, Josefo
resiste a 47 dias de cerco. Então acontece o inesperado e questionável...
A “Roleta Romana” – traidor?
Em 20 de julho de 67 EC, dia da
queda de Jotapata, ocorre o mais suspeito episódio da vida de Josefo, descrito
por ele na terceira pessoa. “...Depois da queda da cidade, fugindo em meio aos
inimigos, ele [Josefo] desceu a um poço muito profundo ao lado do qual havia
uma caverna espaçosa, que não podia ser vista do alto. Lá encontrou 40 dos mais
valentes dos seus, que também ali se tinham refugiado e que tinham todo o
necessário para vários dias(...). Dois dias assim se passaram; no terceiro, uma
mulher o denunciou(...). Vespasiano mandou Paulino e Galicano, dois tribunos,
garantir-lhe que o trataria bem, exortando-o a sair; ele não quis fazê-lo,
porque, não estando persuadido da clemência dos romanos, e sabendo do seu
ressentimento pelo mal que lhes havia feito, temia que quando o tivessem em seu
poder, procurassem vingar-se”. Não conseguindo convencê-lo a se entregar, os
romanos decidiram incendiar a caverna, só não o fazendo porque Vespasiano o
queria vivo – e convida Josefo a se render, prometendo poupá-lo. Perante seus
companheiros, aceitar tal proposta seria uma traição: todos prefeririam morrer
a se entregar. Josefo dissuadiu-os do suicídio e propôs que se estrangulassem
reciprocamente numa ordem determinada por sorteio. “Para ver quem deverá ser
morto por primeiro por aquele que o seguirá; continuemos a fazer sempre do
mesmo modo, a fim de que nenhum de nós se mate por si mesmo, mas receba a morte
das mãos de outro”. Restaram vivos somente ele e um companheiro, como ele mesmo
tenta explicar, constrangido: “Isso
continuou até que restavam somente Josefo e outro; o que aconteceu, talvez, por
uma especial proteção de D’us ou por casualidade”. Teria havido um truque ao
tirar a sorte? Feito prisioneiro, Josefo prediz a Vespasiano que ele ostentaria
em breve a púrpura imperial; quando tal se confirmou, em 69 EC, foi liberto,
como recompensa, e passou a protegido dos romanos.
De Yossef a Josefo
Após ir com o imperador a
Alexandria, retornou ao palco da guerra na Judéia, testemunhou o cerco e a queda
de Jerusalém, acompanhando o vencedor até Roma, onde chegou em 71 com a
comitiva de Tito. Tornou-se cidadão romano e cliente da dinastia dominante, os
flavianos.
Embora Josefo só se refira a si
próprio por este nome, adotou o prenomeTitus e o nome Flavius de seus patrões e
protetores. Esta prática era costumeira para todos os “novos” cidadãos romanos.
Assim resultou o cognome pelo qual ficou conhecido na história e na literatura:
Tito Flávio Josefo. Passou, também, a receber uma generosa pensão, além de
terras na Judéia, confiscadas dos revoltosos, mas viveu em Roma o resto da
vida. As honrarias prosseguiram sob o reinado de Tito e Domiciano.
Sempre permaneceu, pelo menos a
seus próprios olhos, um judeu cumpridor das leis e leal. Nunca pretendeu se distanciar
de seu povo. Após a morte de sua primeira esposa, juntamente com seus pais,
durante o cerco de Jerusalém, casou-se mais três vezes com mulheres judias, e
teve filhos. Como escreveu Lewis Browne, “Josefo tornou-se caudilho romano,
porém, tanto o remoía a consciência, que ele passou o resto da vida a
glorificar e defender em livros a história e a religião dos judeus”.
A obra de Josefo
Sem dúvida, Josefo foi um
importante apologista da cultura e do Povo Judeu no mundo romano, numa época de
conflito e tensão. Através de sua obra procurou revelar o judaísmo aos letrados
e sua compatibilidade com o pensamento helenista. Ressaltando a antigüidade da
cultura judaica, apresentava seu povo como civilizado, devoto e filosófico. Nos
cerca de 30 anos em que viveu em Roma sob o patrocínio de Vespasiano, Tito e
Domiciano, Josefo escreveu a maior parte de seus trabalhos, dos quais restam
quatro: Bellum Iudaicum (A Guerra Judaica) em sete volumes;Antiquitates
Iudaicae (Antigüidades Judaicas ) em 20 tomos; em Contra Apionem (Contra Apio)
defende os judeus das acusações deste alexandrino; e, em Vita (Autobiografia),
defende-se das acusações de que teria sido responsável pela guerra.
Compôs a Guerra Judaica, obra
sobre os judeus e sua guerra contra Roma, originalmente em aramaico. Encorajado
a traduzi-la para o grego, ele próprio o fez, entre 79 e 81 EC, e foi esta
versão que chegou até nós. Alguns acham que a escreveu por remorso – pelo modo
suspeito como salvou sua vida. Mas é mais provável que seja uma obra encomendada.
Sendo ainda numerosos os judeus no Império Romano e esboçando-se novas
revoltas, era preciso dissuadir qualquer tentativa de insurreição. A melhor
forma é o relato da guerra na Judéia – e quem melhor do que Josefo para
fazê-lo?
Sua segunda obra, Antigüidades
Judaicas, narra a história dos judeus desde seus primórdios até a deflagração
dessa guerra. Escrita em grego, fica pronta em 93 EC. Josefo, como qualquer
judeu da época, sofre muito com a ignorância e o desprezo do mundo greco-romano
acerca dos judeus e de seus costumes, tradições e crenças. Julgados a partir
dos padrões culturais gregos, os costumes alimentares e rituais judaicos
causavam profunda estranheza; sua história era vista como mítica e absurda,
suas origens desfiguradas por feroz anti-semitismo. O objetivo de Josefo com
esta obra é, portanto, mais que informar, defender seu povo e impressionar os
romanos através de uma história milenar. Mostrar a antigüidade das origens era,
na sua época, fundamental para qualquer povo que queria ser respeitado.
Um exemplo do anti-semitismo que
florescia no século I EC é o que se manifesta entre escritores egípcios
helenizados, de Alexandria, entre os quais Apion. É contra ele que Josefo
escreve o Contra Apion,em 95 EC, contestando como falsas as idéias difundidas
em Roma por esse popular autor. Apion, de origem egípcia, era escritor e
professor grego, famoso como mestre em Homero e autor de uma obra sobre a
história do Egito, com grande influência na formação da opinião pública culta
de sua época.
Nas palavras de Jacob Guinsburg,
Contra Apion é “uma de suas melhores realizações literárias. Escrita com grande
veemência, é uma peça de defesa apaixonada, mas autêntica. (...) contém, na
segunda parte, um esforço compreensivo das concepções de vida e dos costumes
religiosos e legais dos judeus, que, colocados sob a égide da legislação
revelada de Moisés e da polis teocrática inspirada diretamente nos Mandamentos
de D’us, encontraram na Sua Torá as noções que são também as dos mais sábios dentre
os gregos, com a vantagem de terem sido convertidas em prática preceitual e
religiosa, argumenta Flávio Josefo”.
O historiador e a permanência de
seus registros
Se fossem levados em conta
exclusivamente os judeus, talvez a obra de Josefo jamais tivesse chegado até
nós. Ele só é citado na literatura judaica a partir do século 10. Em
contrapartida, seus escritos interessaram aos cristãos, que, desde cedo,
começaram a citá-lo e a utilizá-lo. Orígenes, Jerônimo e muitos outros viram em
Josefo o complemento do Novo Testamento, já que havia sido quase contemporâneo
de Jesus e dos Apóstolos na Judéia, e nos textos fala de Herodes e Pôncio
Pilatos. Sua preocupação em mostrar a antigüidade da religião judaica vai ao
encontro das preocupações da apologética cristã ao identificar, por exemplo,
Moisés como sendo anterior aos filósofos gregos. Theodore Reinach, que
organizou a tradução para francês e as notas da obra de Josefo, afirmou que sem
ele “não saberíamos quase nada a respeito do destino do Povo Judeu durante os
dois últimos séculos de sua existência nacional, e nada do contexto histórico
em que nasceu o cristianismo”.
Essa imensa obra foi lida e
relida no Ocidente cristão, da Renascença até o século 19. A cristandade via
nele o único historiador judeu que mencionou a existência de Jesus, num trecho,
aliás, muito curto e controverso. Ele também foi, segundo os cristãos,
testemunha da “punição” do Povo Judeu “condenado às lagrimas e a ser errante
eterno”. É a esse mal-entendido que a obra de Flávio Josefo deve sua
sobrevivência.
Remorso, catarse e
racionalização
Como vimos acima, a maneira como
salvou sua vida deixou remorsos na alma de Josefo. Desta dor na consciência
nasceu sua obra literária. Escreve Mireille Hadas-Lebel que Josefo sentiu...
“tamanha necessidade de se justificar (...) que, por isso mesmo, torna-se
suspeito. Nove décimos de suaAutobiografia são (...) dedicados aos poucos meses
em que ele exerceu as funções de governador da Galiléia (...). Josefo nos
fornece, com 20 anos de distância, na Guerra e na Autobiografia, dois relatos
paralelos, um na terceira pessoa, o outro na primeira, entre os quais subsistem
divergências não desprezíveis. (...) Por ter querido demais justificar-se,
Josefo abre a porta para o pior inimigo do historiador: a dúvida da
posteridade”.
É difícil determinar com
precisão o papel que teve nos acontecimentos, pois a fonte disponível são seus
próprios escritos, onde tentou, simultaneamente, demonstrar sua integridade
como líder judeu e patriótico e sua devoção a Roma. Contudo, são as fontes mais
autorizadas da história judaica nos primeiros séculos antes e depois do início
da Era Comum. Aos que o acusavam de traição, quis justificar sua passagem para
o campo romano e apresentar sua explicação sobre a guerra. Os judeus destruíram-se
por causa de suas divisões sectárias. D’us os castigou, dando aos romanos uma
força irresistível. Este é o tema de A Guerra Judaica. Josefo relatou fatos os
quais foi testemunha; esclareceu-os, porém, remontando ao passado, até a
revolta dos Macabeus no século II a.E.C. E não é por acaso que este é o seu
primeiro livro, pois além de narrar acontecimentos, tratou de justificar sua
própria atuação, que era alvo de violentas acusações por várias correntes
judaicas.
A seguir viu-se instado a
expandir o relato numa história do seu povo, desde o começo até o seu tempo. No
dizer de Guinsburg, nas Antigüidades Judaicas, “narrativas fabulosas,
contradições e erros mesclam-se com dados preciosos, que denotam conhecimentos
profundos da história e das tradições judaicas e que a arqueologia moderna vem
comprovando de maneira, às vezes, surpreendente. Ainda hoje é, não só um
repositório literário, um clássico da historiografia antiga, como um dos
principais anais do passado de Israel”.
Justo de Tiberíades, antigo
companheiro de luta e rival na Galiléia, contestou o papel de Josefo na guerra;
imediatamente, este se justificou, publicando Vida (que acrescentou como um
apêndice a Antigüidades), que é, acima de tudo, uma autodefesa política. Parte
do tormento que lhe ia à alma transparece em textos como o discurso que Josefo
põe nos lábios de um dos chefes, que se manteve leal até o fim. No mundo
greco-romano vigorava considerável anti-semitismo, particularmente entre os
intelectuais pagãos que não entendiam a religiosidade obstinada dos judeus,
como mencionamos. Então Josefo retoma o trabalho, para demonstrar a antigüidade
e a tradição bíblica e para defender os valores do judaísmo, em ContraApion.
Talvez o fundamento principal da
fama duradoura de Josefo como historiador seja o respeito com que suas obras
eram tidas pela Igreja. Inúmeros eruditos e historiadores modernos- cristãos e
judeus, afirmam que seus relatos foram textualmente alterados nos primórdios da
Era Comum por propagandistas da Igreja, a fim de obter corroboração histórica
para Jesus, uma vez que não havia outro testemunho histórico contemporâneo e
externo que o comprovasse.
Assim como outro judeu, Fílon,
filósofo de Alexandria, Josefo, embora nunca tenha renegado sua origem e sua
fé, tornou-se um “filho perdido” para o judaísmo: seja pela suspeita de
traição, por viver com os vencedores em Roma ou por ter escrito sua obra em
grego ou por ter sido “adotado” pela Igreja desde os primórdios.
Para abordar a sua época, os
historiadores de Roma se serviam dos autores latinos, restringindo Josefo a um
papel de cronista dos assuntos da Judéia, apesar da importância do seu
testemunho. Caluniado ou suspeito de parcialidade – que historiador não o é
quando narra fatos vividos? – reivindicava para si com orgulho: “O historiador
que merece elogios é aquele que registra fato cuja história nunca foi escrita e
que elabora a crônica de seu tempo para as gerações futuras”.
No Tribunal da História: quem é
herói?
Em sua vida póstuma milenar,
Josefo assumiu os rostos mais diversos – de defensor da fé a semeador de
dúvida. Há cerca de um século, os historiadores que o utilizam como fonte
principal para o período que ele cobre em seus textos sentem-se como que obrigados
a fazer por Josefo o que não lhes ocorreria fazer por nenhum outro historiador
antigo: julgar o homem. A parcialidade do autor os levou a isso. Paralelamente,
nos círculos sionistas, redescobria-se Josefo, mas com certo constrangimento.
Seria preferível um herói para contar a história de Massada. Em vez disso, o
narrador tratava-se de um adversário dos heróis cuja coragem se admirava.
Para ser um herói, era preciso
que ele tivesse morrido em Jotapata, sem ter escrito nada. Devemos lamentar que
ele não tivesse sido um herói?
Algumas
citações de Josefo merece atenção e cuidado, pois não parecem sere verdadeiras,
pois deveria ter um motivo particular para escrever a respeito de algum assunto
distorcendo a realidade dos fatos, como observamos.
Autora do texto: Jane Bichmacher
de Glasman é Doutora em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica,
Professora Adjunta, fundou e dirigiu o Programa de Estudos Judaicos - UERJ;
organizou e coordenou o Setor de Hebraico - UFRJ e UERJ; e Escritora.